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sexta-feira, 27 de abril de 2007

Na madruga

(André Lopes)

Já devia ser quase três da madrugada, os carros e as pessoas iam se minguando na rua, o bar da esquina ainda estava cheio e mais adiante um velho conversava bem de perto com um jovem rapaz, segurando em uma de suas mãos, os rostos bem próximos um do outro, a noite era fria e dava para ver no meio da fumaça saída da boca do velho, que mais falava, gotas sórdidas de saliva que respingavam dolentes no rosto do jovenzinho.

Os dois estavam cambaleando, pareciam dançar uma valsa obscura, a boca murcha e saburrosa do velho abarcava a boca pequena e assombrada do jovenzinho, que abanava os braços como se estivesse afogando, passado uns dez minutos a viatura chegou, os dois foram pra um canto escuro da rua e o gemido dos dois se confundiam com os gritos da sirene. Irritado e embriagado o policial me perguntou o que fazia ali aquela hora. Quando ia dizer algo ele me lascou o bofete na cara dizendo que lugar de bicha é na cadeia ou no cemitério, eu tentei explicar que não era bicha que apenas tava saindo do bar e vi aqueles dois se agarrando e coisa e tal. Insuficiente, ele ameaçou me levar preso se eu insistisse em falar mais alguma coisa, me perguntou qual era o meu nome, Abelardo eu disse. Que porra de nome é esse? Eu... Cala a boca! Mas é que... Cala a boca eu já disse filho da puta! Mas... Quer morrer! Depois dessa não disse mais nada, era a minha palavra me levando pra guilhotina. Quando fiz menção de ir embora senti uma pancada na cabeça, depois não vi e nem senti mais nada.

Acordei hoje, três dias depois, cheio de hematomas, as mãos e os braços esfolados, o lábio superior inchado, a cabeça raspada com uma cicatriz de mais ou menos uns dez centímetros, nenhuma visita, quero ver minha mãe, é uma enfermaria fria, a cama, uma janela bem no alto da parede, uma mesinha, um lápis e um caderno. As vezes entra uma enfermeira e um policial, todos muito carrancudos, silenciosos e ágeis, não sentia as pernas e a enfermeira limpava minhas fezes.

Ninguém me dizia nada, silêncio absoluto, nem um tic-tac de relógio existe pra diminuir o peso do silêncio. Fecho os olhos e tento imaginar coisas boas, imagens confusas e aterrorizantes me tiram o sono, sinto frio e medo, como nunca imaginava que fosse sentir um dia.

A enfermeira que veio trazer o remédio me lembra Lígia, coisa estranha, to sentindo o perfume da Lígia, uma das poucas coisas que senti dela, queria sentir o corpo, todo nu, embriagado de desejo, suado de tesão, os peitinhos rijos, a boca pequena e macia, mas só o perfume dela ficou cravado aqui bem dentro, nada mais.

Eu quero fugir pela janela antes que Lígia venha me aplicar a injeção letal.

(2007)

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