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segunda-feira, 9 de abril de 2007

Do lado de fora

(André Lopes)

Araci viva dizendo que ia comer vidro moído misturado no feijão. Só passei a acreditar nisso quando as desconfianças foram aumentando. Iríamos casar, eu gastava mais do que recebia, ela achava que era com putaria e bebida, eu não sabia explicar. Cansado de falar de amor comecei a achar tudo muito inútil, sem brilho, confuso queria me debruçar num balcão de uma birosca qualquer. Os amigos estavam casando comprando casa e alianças, e eu naquela de falar sobre música, poesia e anarquismo. Duas almas num corpo só, dizia os camaradas, eu dizia que era amor e soltava uma gargalhada que seduzia os de espírito livre e socava os caretas. A idéia de Araci entrou na minha xícara de café, no meu copo de uísque, nos meus livros, nas teclas do computador... Não podia mais olhar pra mulher nenhuma, que vinha a imagem de Araci cagando sangue.

- Quero casar mês que vem!

Só tinha um silêncio pra responder Araci e ela enchia os olhos d’água e ficava uns quinze segundos parada me olhando. Queria abraçá-la mas não dava... A raiva de Araci jogou do quarto andar minhas garrafas de vinho e uísque, se não a pegasse pelos cabelos os discos iam juntos. A primeira vez que agi com violência com Araci, esse puxão de cabelo, que estilhaçou a minha alma. Dormia ouvindo o choramingado baixinho dela. Eu que fiquei num estado de sei lá o quê quando descobri que Araci não era mais virgem e que já tinha beijado tantas bocas, queria ser o único mas cadê a moral pra isso?

No pensamento as vezes fingia que Araci ainda era virgem, me perdia entre a verdade e a mentira, quem estava mentindo, meu pensamento ou a ausência do cabaço de Araci? talvez ele estivesse só escondido, ou ela teria nascido sem imen, mas ela já teve outros, que me contenho em não lhe perguntar quem era, se ainda viviam, onde ela tinha conhecido, em qual ocasião, se o pau deles era maior do que o meu, se algum deles já brocharam, qual beijo era melhor... Só ouvia silêncio, um silêncio frio e nublado e o gosto amargo na boca de pensar em quem tinha violado Araci.

Só pensava em Araci! Me acusavam de traição.

- Olha se eu fosse você eu abria o olho!

Essa frase veio da Alice, a que sempre me tratou bem, com um sorriso esparramado no rosto pálido que eu não sabia decifrar, o meu sorriso eu conheço, agora o do outro, é como se me perguntar o que existe no topo do Himalaia.

Não sabia se era essa e tantas outras frases odiosas, que Araci ouvia de Alice, ou se era outro tipo de pensamento que nublava a sua existência.

Era angustiante ver Araci se entregando, pensamento fixo no feijão com vidro moído, queria amá-la mais, fazia minha parte. Me retorcia durante os sonhos, neles ela sempre desaparecia, vinha imagens de antigas namoradas, todas verdadeiras assombrações, exceto uma.

Na repartição a coisa tava feia, com a oposição no poder o chefe me virou a cara, ele não gostava dos livros que eu levava pra ler nas horas vagas, diga-se longas horas. Certa vez seu Benário me flagrou debatendo com o contínuo sobre os rumos do Brasil, ele me achava bem patriota e zelador da moral e dos bons costumes, depois de ter ouvido minhas convicções seu sorriso se fechou pra mim e demitiu o contínuo, Alan, rapaz esguio, amarelado, franzino, barba por fazer, recém formado em história e tinha um grupo de estudos anarquistas, um bom currículo, exceto pra seu Benário, que suportava o rapaz por lá.

Sentia que seu Benário me suportava também, a mudança de comportamento foi rápida demais e ele sempre me perguntava:

- Pra quê que você lê tanto rapaz? Vai acabar ficando doido ou míope. E o casamento quando é que sai?

A primeira pergunta enchi o peito e a boca pra responder, mas foi em vão, agora a segunda pergunta a resposta estava pronta e foi certeira:

- Só caso com casa seu Benário e com aumento também.

Ele pigarreou, fransiu a testa e terminou o assunto se dirigindo a outro funcionário, com o escândalo típico dele.

Eu confiava no meu trabalho, seu Benário desconfiava, vivia mandando eu ler a bíblia ao invés dos livros que eu levava pra repartição.

O Alan tinha quatro barrigas pra dar de comer em casa, a esposa dele era durona, excelente pessoa, enérgica, tinha fibra, mas lhe faltava a sensibilidade do marido, o cara tava emagrecendo por causa disso. O que ele lia e sentia guardava pra si, vez ou outra compartilhava comigo.

A única vez que ele chegou bêbado em casa foi escurraçado pela mulher, apanhou sem dó e foi obrigado a dormir na rua, era uma noite fria e chuvosa, ele ficou ruim de pneumonia. Não tinha coragem de sair fora do embaraço que era seu casamento, no começo flores do meio pra frente uma montanha de merda. Ele já estava fora mas não tinha coragem de deixar a mulher, a casa e os filhos. Seu Benário lhe demitiu. Lembro de uma vez ruim ele me dizer: - Rapaz sabe qual é a única vez que me sinto em casa? Fora dela!

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