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terça-feira, 9 de outubro de 2007

As flores pra te dar

(André Villon)

As flores que eu tinha pra te dar

Ficaram lá...

Naquele samba-canção,

Na seresta inacabada,

No violão por afinar,

Na lua atrás das nuvens,

No assobio do bêbado triste

Que valsava com o vento da noite,

No beijo suspirado dos namorados

Que confessavam baixinho suas dores e desejos...

As flores que eu tinha pra te dar

Dormiram de madrugada

E esqueceram de ir trabalhar,

Foram cantar no circo

E amargaram a dor de ver outra flor

fugir com o trapezista mais bonito!

As flores que eu tinha pra te dar

Se juntaram aos malandros da praça

Fugiram do quartel, brigaram de navalha

E seguraram o choro até deitar na sua cama.

As flores que eu tinha pra te dar

Se trataram sozinhas

Na vastidão de um campo imenso

Debaixo de um céu azul também imenso

E agora repousam tranqüilas

Nas minhas mãos feridas pelos seus espinhos

E por não sentir dor e vontade de entregá-las

Elas ainda estão nas minhas mãos!

Do lado de fora

(André Lopes)

Araci viva dizendo que qualquer dia desses se matava. Só passei a acreditar nisso quando as desconfianças foram aumentando. Iríamos casar, eu gastava mais do que recebia, ela achava que era com putaria e bebida, eu não sabia explicar. Cansado de falar de amor comecei a achar tudo muito inútil, sem brilho, confuso queria me debruçar num balcão de uma birosca qualquer. Os amigos estavam casando comprando casa e alianças, e eu naquela de falar sobre música, poesia e anarquismo. Duas almas num corpo só, diziam os camaradas, eu falava que era amor e soltava uma gargalhada que seduzia os de espírito livre e socava os caretas. A idéia de Araci entrou na minha xícara de café, no meu copo de uísque, nos meus livros, nas teclas do computador... Não podia mais olhar pra mulher nenhuma, que vinha a imagem de Araci morta.

- Quero casar mês que vem!

Só tinha um silêncio pra responder, ela enchia os olhos d’água e ficava uns quinze segundos parada me olhando. Queria abraçá-la mas não dava... A raiva de Araci jogou do quarto andar minhas garrafas de vinho e uísque e se não a pegasse pelos cabelos os discos iam juntos. A primeira vez que agi com violência com Araci, esse puxão de cabelo, que estilhaçou a minha alma. Dormia ouvindo o choramingado baixinho dela. Eu que fiquei num estado de sei lá o quê quando descobri que Araci não era mais virgem e que já tinha beijado tantas bocas, queria ser o único mas cadê a moral pra isso?

No pensamento as vezes fingia que Araci ainda era virgem, me perdia entre a verdade e a mentira, quem estava mentindo, meu pensamento ou a ausência do cabaço de Araci? talvez ele estivesse só escondido, ou ela teria nascido sem imén, mas ela já teve outros, que me contenho em não lhe perguntar quem eram, se ainda viviam, onde ela tinha conhecido, em qual ocasião, se o pau deles era maior do que o meu, se algum deles já brocharam, qual beijo era melhor... Só ouvia silêncio, um silêncio frio e nublado e o gosto amargo na boca de pensar em quem tinha violado Araci.

Só pensava em Araci! Me acusavam de traição.

- Olha se eu fosse você eu abria o olho!

Essa frase veio da Alice, a que sempre me tratou bem, com um sorriso esparramado no rosto pálido que eu não sabia decifrar, o meu sorriso eu conheço, agora o do outro, é como se me perguntar o que existe no topo do Himalaia.

Não sabia se era essa e tantas outras frases odiosas, que Araci ouvia de Alice, ou se era outro tipo de pensamento que nublava a sua existência.

Era angustiante ver Araci se entregando, pensamento fixo no suicídio, queria amá-la mais, fazia minha parte. Me retorcia durante os sonhos, neles ela sempre desaparecia, vinha imagens de antigas namoradas, todas verdadeiras assombrações, exceto uma.

Na repartição a coisa tava feia, com a oposição no poder o chefe me virou a cara, ele não gostava dos livros que eu levava pra ler nas horas vagas, diga-se longas horas. Certa vez seu Benário me flagrou debatendo com o contínuo sobre os rumos do Brasil, ele me achava bem patriota e zelador da moral e dos bons costumes, depois de ter ouvido minhas convicções seu sorriso se fechou pra mim e demitiu o contínuo, Alan, rapaz esguio, amarelado, franzino, barba por fazer, recém formado em história, tinha um grupo de estudos anarquistas, um bom currículo, exceto pra seu Benário, que suportava o rapaz por lá.

Sentia que seu Benário me suportava também, a mudança de comportamento foi rápida demais e ele sempre me perguntava:

- Pra quê que você lê tanto rapaz? Vai acabar ficando doido ou míope. E o casamento quando é que sai?

A primeira pergunta enchi o peito e a boca pra responder, mas foi em vão, agora a segunda pergunta a resposta estava pronta e foi certeira:

- Só caso com casa seu Benário e com aumento também.

Ele pigarreou, fransiu a testa e terminou o assunto se dirigindo a outro funcionário, com o escândalo típico dele.

Eu confiava no meu trabalho, seu Benário desconfiava, vivia mandando eu ler a bíblia ao invés dos livros que eu levava pra repartição.

O Alan tinha quatro barrigas pra dar de comer em casa, a esposa dele era durona, excelente pessoa, enérgica, tinha fibra, mas lhe faltava a sensibilidade do marido, o cara tava emagrecendo e perdendo cabelo por causa disso. O que ele lia e sentia guardava pra si, vez ou outra compartilhava comigo.

A única vez que ele chegou bêbado em casa foi escurraçado pela mulher, apanhou sem dó e foi obrigado a dormir na rua, era uma noite fria e chuvosa, ele ficou ruim de pneumonia. Não tinha coragem de sair fora do embaraço que era seu casamento, no começo flores do meio pra frente uma porcaria. Ele já estava fora mas não tinha coragem de deixar a mulher, a casa e os filhos. Seu Benário lhe demitiu. Lembro de uma vez ruim ele me dizer: - Rapaz sabe qual é a única vez que me sinto em casa? Fora dela!

A história desse rapaz mexeu comigo, me fez passar das duas para as quatro carteiras de cigarros por dia, de três para seis doses de conhaque... Araci e seus dramas me cercavam dia e noite, se ela não casasse comigo morria e se casasse continuaria uma séria candidata a depressão. Tudo foi ajeitado, as tias vieram do interior, a mãe, a madrinha e as amigas eufóricas organizaram tudo conforme manda um inesquecível dia de noiva.

Seu Afonso, pai de Araci, quis conversar comigo, ele conhecia, melhor do que a mãe, os transtornos sentimentais da filha.

- Olha meu jovem, casamento é como um pacto! Se você levar minha filha pro altar é só ela e mais ninguém, compreendeu?

Eu estava decidido, mas as palavras do pai da noiva me estremeceu. Era como um cano frio de uma cartucheira no pé do meu ouvido, engolia seco cada palavra, o hálito quente de tabaco do velho acelerava minha inanição.

Tudo pronto, meus pais chegaram no dia do casamento, ficaram num hotel modesto e higiênico que minhas economias possibilitavam, era o presente que nunca tinha dado aos dois.

Momentos antes da cerimônia estive com Araci, ela suava frio e tremia das cabeças aos pés, perguntei se era nervosismo ou o quê, estacada na minha frente começou a chorar e foi pro seu quarto, na Fazenda, onde estava acontecendo a festa, herança da família do Seu Afonso. A fuga de Araci me embrulho o estômago, quis fumar, sem cigarros, quis beber, só depois da cerimônia.

Na hora do casamento Araci apareceu pálida amparada pelas mãos da mãe e de uma tia. O padre na sua frieza habitual começa a cerimônia e os convidados na sua euforia, fome e inveja torcem pelo início da festa mais do que pela felicidade dos cônjuges. Após a troca de alianças e dos sim Alan aparece louco e bêbado como um possesso, gritando em euforia rebelde como um Dandi moribundo:

- Ela é minha, sempre foi, sempre!

Foi como se uma tempestade de granizo soterrasse a festa e a boca livre dos parentes. A mãe e as tias simularam um desmaio coletivo, o pai e a avó quiseram dar tiros, meus pais suportaram a surpresa, pois conheciam as dores do rapaz.

Araci saiu correndo, Alan de joelhos entre gritos e choros, cravava as mãos na terra e esfregava no rosto, as lágrimas, o suor e a baba formavam uma lama grossa e fedorenta.

No ápice do seu delírio o rapaz foi arrastado para o lado de fora do local da festa. Fui atrás de Araci, primeiro do que a parentela desmedida e trouxe a todos a singular notícia, sem sentir o chão e as minhas pernas:

- Enforcada na grinalda!